domingo, 22 de agosto de 2010

O HOMEM PERFEITO

Tome-se um homem qualquer
a viver numa casinha
junto da sua mulher
com vida sossegadinha
de manhã para o trabalho
o almoço contadinho
o cabelo já grisalho
o fato bem compostinho
como todos passa os dias
sempre iguais mas não se importa
não tem nenhumas manias
e com pouco se conforta
seu cigarrito lá fuma
de leitura pouco gosta
de futebol sim, em suma,
e no seu clube aposta
um cafezinho à saída
com os colegas de luta
altura de uma bebida
e também de uma disputa
p’ra defender suas cores
e jogar no totobola
que aliviaria as dores
e descansaria a cachola
dava p’ra pagar ao banco
a hipoteca malvada
talvez abrisse um estanco
passaria a ter criada
mas se isso não se der
que é o que se tem mais certo
lá continua a viver
sujeito a todo o aperto
de chegar ao fim do mês
com a carteira vazia
que isso de rigidez
é tal e qual a azia
depois de uma almoçarada
como aos domingos se passa
dia de não fazer nada
e de gozar a madraça
pois o dinheiro não dá
para ter outra opção
p’ra além daquilo que há
e que é ver televisão
já que na segunda-feira
de novo o mundo rola
e quer se queira ou não queira
filho segue p’ra escola
a mulher vai trabalhar
o autocarro está
como sempre a abarrotar
mas outro meio não há
para ao serviço chegar
repete-se assim a cena
tem sido igual toda a vida
também não há que ter pena
basta esperar a partida
com certa resignação
a velhice não perdoa
as doenças também não
por tal não se gasta à toa
prevenir o amanhã,
os amigos vão morrendo
já é pouca a vida sã
o remédio é ir vivendo
com certa resignação
à espera do seu caixão.

Este é o homem modelo
o que nasce, vive e morre
que não sendo pesadelo
faz o que pode e lhe ocorre
não é muita a ambição
e de ter mais bem gostava
não sai do que está à mão
quando pode desencrava
sem ser muito resoluto
já que tem muitas cautelas
norma que lhe vem de puto
evitando as mazelas
e conservando os empregos
não mudando de patrões
já que os desassossegos
é que causam confusões
mais vale pouco que nada
dizem os mais cautelosos
caem sempre em borrada
os que são gananciosos
casado, muito calminho
com um filho que consola
não sendo um coitadinho
tem casinha pachola
nos arredores da cidade
e p’ra ser feliz já dá
não vive da caridade
quem quer demais sofrerá.

Mas ser assim comedido
não ter ambições na vida
justifica ter nascido
e andar por cá de fugida?
Resposta eu cá não tenho
nem quero ser eu juiz
por isso me abstenho
não sei o que é ser feliz.
Homem modelo é assim
nunca desejar de mais ?
Eu falarei por mim
nem todos são iguais
mesmo sem ter o talento
dos grandes homens de génio
há que lutar cem por cento
ainda que falte oxigénio

Com o filho já crescido
que partiu p’ra sua rota
manteve o seu apelido
e é um rapaz janota
os seus estudos lá cumpriu
até onde quis chegar
e a uma moça pediu
para com ele casar
o trabalho o afogou
tinha o destino traçado
uma casa pois comprou
com o dinheiro emprestado
começou tudo de novo
está visto, tinha que sê-lo
é essa a sina do povo
claro, do homem modelo

De vez em quando vem um
que sai daquele padrão
não sendo assim tão comum
juntos fazem multidão
alguns de cabeças espertas
os que fazem por passar
por portas semi-abertas
onde tentam se esgueirar
e quando conseguem ficam
à frente dos que esperam
e assim sempre debicam
pois são eles que aceleram
e de carro ou a pé
de cotovelo em riste
fazem o seu finca-pé
mas que é triste, isso é triste.
Os outros, que poucos são,
sobressaem da manada
nasceram com o condão
de deixar obra do nada;
são os génios, os tocados
pelo dom da Providência
serão os iluminados
na escrita ou na ciência
ou também em qualquer arte
com trabalho e muito empenho
são os chamados aparte
os que mostram ter engenho.
Só que a regra geral
é que os espertos enricam
acumulam capital
como o fazem não explicam;
os outros, os geniais,
quase sempre até morrer
mesmo sendo os anormais
não conseguem convencer
e só depois da partida
e até passados anos
é então reconhecida
a obra de alguns fulanos
com estátua em jardim
ou numa rua o nome
pagando-se assim por fim
a alguém que passou fome
É este o mundo que temos
em que o homem-modelo
mesmo que não aprovemos
é o que leva o selo
de cumpridor, direitinho
levando uma vida inteira
sem sair do seu caminho
sempre com eira e beira

Saudemos tal personagem
Prestemos-lhes a homenagem

Mas seguir o seu caminho
a mim não causa fascínio!












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