domingo, 1 de novembro de 2009

UMA VIDA

Só agora publico este poema, porque talvez já seja altura de dar mostras, aos que são recentes e não viveram, por isso, difíceis tempos antigos, de que um tal José Vacondeus existiu e, casualmente, ainda existe, sempre sem querer dar nas vistas, que aqui andou por este Portugal e algumas coisas fez...
Toda a minha vida um desafio
desde que me conheço é assim
por isso terá sido um desfastio.

Na primária, quando dei por mim
já sabia a tabuada de cor
repetia-a tim-tim por tim-tim.

Na quarta-classe tive um professor
antigo preso político era
que ensinava, era sabedor,

tTnha sempre uma atitude austera
resultado de anos de cadeia
e do isolamento que sofrera.

Terei colhido aí uma boleia
sem dar por isso, era muito novo,
tal ser doente deu-me a ideia

De que se está descontente o povo
e critica em surdina um político
o que quer é recomeçar de novo.

Nasceu assim em mim sentido crítico
mas tão pequeno falava sozinho
não podia sequer ser analítico.

Foi aí o começo do caminho
com dez anos no liceu não entrava
fiquei a marcar passo um aninho,

Com tal professor fiquei onde estava
e ouvia com ele a BBC
da Situação também não gostava.

Tal como o que não se vê não se crê
a bondade do regime não vi
e passei a perguntar o porquê.

Para os estudos a sério nasci
a minha irmã mais velha ia à frente
com a vida então eu aprendi,

E essa pode ser mais complacente
ou conforme a conduzimos, madrasta
mesmo olhando bem o que vai à frente.

Lembro-me que nem sequer tinha pasta
e com cordéis os livros apertava
não deixando de ser entusiasta.

Passando todos os anos lá dava
à família prazer e alegria
que com dificuldade suportava

A despesa que o estudo cria
tratando-se de mais do que um filho
ambos sem razões para fantasia.

Entendi por isso de afogadilho
sem consultar ninguém nem os meus pais
que deveria evitar o sarilho

De criar preocupações demais
pelo que teria de trabalhar
como faziam outros tantos tais.

Então isso foi só um começar
e a estudar à noite fui andando
pois muito me faltava ainda andar.

Empregos menos maus fui arranjando
era sempre eu só que decidia
quando não gostava ia mudando,

Até que, por acaso, um belo dia
fui parar ao que seria o futuro
a Bertrand, a saudosa livraria,

Onde despertou em mim com apuro
a paixão pelos livros e leituras:
tinha de ser esse então o meu furo.

Convivi aí com grandes figuras
das artes, das letras, do jornalismo;
marcaram-me forte tais criaturas.

Pegado me ficou o fetichismo
mas estudar à noite lá se impunha
nada fazia com amadorismo.

Foi no jornalismo que entrei sem cunha
mantendo as duas obrigações
foi como pegar os touros à unha.

As Letras eram minhas intenções
mas a Economia me apanhou
onde fui andando aos tropeções.

Aquilo que desde então se passou
pertence ao desafio da minha vida
em que a política não faltou.

Não foi por isso geração perdida
vivi num mundo de intelectuais,
de gente pensante e bem sabida.

As tertúlias eram semanais
com Ortega y Gasset muito aprendi,
Ferreira de Castro e outros mais

Muitos já morreram, o que é duro,
Aquilino Ribeiro um de tantos
com todos eles fiquei mais maduro

E sem me agarrar a quaisquer santos
mantendo sempre a independência
entrei no jornalismo com encantos.

Não tendo a Censura complacência
e tendo à minha perna sempre a PIDE
o que me valeu foi a insistência

Para prosseguir nessa dura lide
para não desistir da profissão
seguindo exemplo de quem progride

Mesmo face a alguma decepção
podia aguentar, era solteiro,
e mais de uma vez conheci prisão,

Mas até aí tive bom parceiro
o Piteira Santos, que companhia!
boas conversas o tempo inteiro…

Em certa altura tive a ousadia
de escrever uma enciclopédia
um editor teve a valentia

Embora não fosse uma tragédia
eram vinte volumes, que corrida!
não se tratava de qualquer comédia…

Empenhei-me dois anos nessa lida
embora não deixando os jornais
mas foi uma aventura atrevida.

E a enfrentar tantos vendavais
a idade avançava sem parar
a vida não são só jogos florais.

Já bem trintão e quase sem esperar
num intervalo dos jornais, forçado,
surgiu a ocasião de casar,

Eu, esquerdista predestinado
entrar em família da direita
seria desviar todo o meu fado!

Mas já estava escrita a receita
não podia fugir de tal destino
nunca se sabe o que nos espreita

E mesmo quando se pensa ser fino
quando nos damos conta já fizemos
aquilo que dizemos não ter tino.

Depois da obra tudo esquecemos
o melhor é começar vida nova
engolir sapos vivos merecemos

E saber que dai até à cova
tudo o que dantes eu fazia, era,
o passado é coisa que se escova.

É verdade que a mulher sincera
abdica uma porção do seu antes
ainda que a família fique fera.

E perante todos esses obstantes
com a mobilidade reduzida
ela cristã, eu tal como Cervantes

A ver paisagem já indefinida
com moinhos de vento bem distantes
e com sanchos panzas de foragida.

Republicano sim, tal como dantes
monárquica Filipa por herança
mas nada disso criou rocinantes

A cavalgar diferente andança
desencontrada, destinos opostos,
mas cada um de nós com sua dança

Cá estamos os dois com nossos gostos
em bastantes coisas bem diferentes
pelo que certas vezes dá desgostos.

E dado que não temos descendentes
se não aquela que sentimos filha
não haverá guerra entre parentes,

Não ficará nada que dê guerrilha
só livros, muitos livros e pintura
que para alguns não é maravilha

Alguma coisa na minha cultura.
serviu para poder amealhar
o que fiz ao longo de vida dura.

Como isso não serve para dar
bem se perde com as cinzas da morte
não terá régua para avaliar

Reconheço que fui bastante forte
para preencher todo o meu programa
talvez pudesse ter feito um corte

Criando diferente panorama
mas já não seria eu o autor
do que fiz sem merecer qualquer fama.

A peça de teatro com rigor
até recebeu um prémio de ensaio
mas a Censura não a deixou pôr

Em cena no Nacional, mas que raio!
e até hoje nunca ninguém viu
nem espreitou mesmo até de soslaio

Ninguém se lembra a quente ou a frio
de uma revista que até deu brado
chamava-se Mercúrio, cumpriu

Aquilo que lhe estava destinado
que era difundir bom escritor
de contos e talvez pouco falado.

E o que então fez grande furor,
na época em que surgiu à venda
o Mundo Financeiro sim senhor

Que era quase uma oferenda
aos comerciantes que sem estudos
tinham as finanças como uma lenda.

Apesar de na rua sermos mudos
tive colaboradores comunistas
quer operários quer com canudos.

Eu, que nunca gostei de dar nas vistas
e a minha independência conservava
jamais figurei em qualquer das listas

Do único partido que reinava,
clandestino pudera, perseguido,
e que a PIDE então não largava

Quem o aceitasse era bandido
só tinha um destino, era a prisão
ou a U.N. o único partido.

Quando o Piteira Santos, de puxão,
tinha a polícia à perna p’ro prender
encontrou um amigo mesmo à mão,

Era eu, que o podia esconder
o que fiz numa casa emprestada
onde mais ninguém tinha de saber

Que era ali a última morada
antes de partir pr’a África norte
onde ficou com fé na alvorada.

Só que eu não tive a mesma sorte
denunciado por traidora vil
lá fui parar ao quinto andar do forte.

Tudo isto passou com ar hostil
mas como ainda não era casado
havia que voltar ao meu redil.

Começando de novo já cansado
deixei por uns tempos o jornalismo
tinha que me voltar p’ra outro lado

Assim, tornei de novo ao fatalismo
ao que está escrito no guião da vida
pensei muito, mas hoje já não cismo

Casado, era agora outra lida
para trás ficou o que eu fui então
não faz falta lamber hoje a ferida.

O dia dos cravos trouxe ilusão
pois novas perspectivas se abriam
e eu não teria qualquer perdão

Se não festejasse sonhos que haviam;
sem censura era o momento dado
para ver de facto o que valiam

Todos os que se diziam do lado
dos revoltosos, sempre tendo sido
gente que passou um mau bocado.

Isso diziam com ar convencido
levantando o punho com arrogância
qualquer um ficaria convencido

De que isso não era apenas ânsia
de que faziam parte do partido
desde sempre, desde sua infância!

Dessa forma fazia bem sentido
lançar semanário independente
mesmo no meio de tanto alarido

E continuando a ser intransigente
com os princípios da democracia
fundei o “Tempo” sem ficar contente

Tendo logo depois chegado o dia
em que decidi criar de raiz
jornal sem partido, grande utopia!

Durou dez anos, chamou-se “o País”
nasceu e viveu sempre com paixão
cumpriu o dever, nunca foi juiz

O seu fim foi só por uma traição
de um desses que fugiu p’ro Brasil
e toda a vida foi um aldrabão.

Pois essa gente que odeia Abril
mesmo os falidos que fingem que não
usam a política como ardil.

Já muito longe a Revolução
quem apanhou o comboio a andar
deixou para trás quem naquele então
sofreu bastante por não abdicar.

Só resta hoje a consolação
de ter a consciência tranquila
mesmo estando já no fim da fila.
por ter feito algo pela Nação

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