sábado, 8 de agosto de 2009

RAULZINHO



Recebi a notícia com avassalador desgosto. Não que eu, nestes últimos anos, tivesse assíduos contactos com ele. As nossas vidas não se cruzavam, muito embora tivesse sido ele que fez questão em ser padrinho das nossas entradas, da minha Mulher e minha, como sócios da APOIARTE, a Associação de Apoio aos Artistas, isso já há uma dúzia de anos, para ambos podermo-nos encontrar com ele na nossa fase final da vida. O que não veio a acontecer.
O nosso querido Solnado quis ir à frente. E, embora eu acompanhasse o seu estado de saúde, bastante debilitado, e sobretudo esta última intervenção cirúrgica, sempre se esperava que o Raul Solnado arrebitasse e ainda nos desse alguns anos de convívio.
As pessoas que me persistem em insistir comigo para eu escrever as minhas memórias, ao que eu me tenho sempre furtado por receio de trazer à baila assuntos que muitos não gostariam nada que fosse divulgados, ao lerem esta minha singela homenagem ao Raul logo virão dizer-me que faço mal em não transmitir para os outros aquilo que se passou ao longo da minha vida e que, segundo eles, constitui pedaços de história (com h pequeno) que interessava a uns tantos. Mas eu prefiro contar pequenos trechos quando eles vêm a propósito de alguma coisa. E este é o caso.
Pois o Raul, que tinha a mesma idade que eu, entrou nas minhas relações ainda ele não tinha aderido à profissão de actor. Nessa altura, há cerca de 56 anos, ainda ele ocupava a vida a vender piaçabas e vassouras que eram fabricados pelo seu pai e, nas horas disponíveis, frequentava a Academia Guilherme Cossul, já na ânsia de enveredar pela carreira de actor. Nessa ocasião, na minha juventude e por ser meu amigo o rapaz da mesma geração que dirigia o Cabaret Maxime, que tinha sido construído pelo seu pai Cabeleira, avô do agora conhecido pianista José Manuel Cabeleira, devido a essa circunstância frequentava assiduamente a referida casa de espectáculos e sentava-me à mesa do Carlos Cabeleira a gozar do prazer do ambiente que ali era vivido. Durou um ano, exactamente, o período dessa distracção, pois que, a partir daí, nunca mais entrei na referida casa que convidava a distracções das realidades da vida.
Pois foi nesse período que o responsável pelo Maxime, conhecendo a minha inclinação para a escrita e sendo já eu profissional do jornalismo, me convidou para escrever um número que fugisse completamente aos espectáculos que ali ocorriam, só à base de artistas espanholas, para desenfastiar um pouco o ambiente. E assim nasceu na minha ideia um texto em que surgisse um actor português a desempenhar a figura de um amolador de rua, graças ao empréstimo de uma bicicleta para o efeito. Para desempenhar esse papel convidou-se o ainda pouco conhecido José Viana, que também frequentava a Guilherme Cossul. Só que, na verdade, o número não causou grande efeito e foi o próprio Zé Viana que sugeriu que o texto fosse acrescentado para dar entrada a outro protagonista e indicou “um rapaz com habilidade” que também frequentava a Academia. Aderindo-se à proposta, surgiu, na noite seguinte, uma pequena figura, de casaco por cima do rabo e… gago. E eu fiquei espantado! Como ia escrever um texto para um tartamudo? Mas, perante a garantia do Zé de que o rapaz tinha habilidade, lá acrescentei o possível à cena que tinha o nome de “O Sol da Meia-Noite”. E assim se estreou Raul Solnado, como actor profissional, auferindo o primeiro dinheiro como tal. Cinquenta escudos por noite.
Anos mais tarde, ao conversar Raul comigo sobre este episódio, disse-me ele com entusiasmo: “Olha, pá, e depois fui aumentado para 60 escudos!...”
E foi daqui que saiu o grande Raul Solnado, o genial que teve a grande visão de seguir as pisadas do cómico espanhol Gila, o que lançou as conversas telefónicas engraçadíssimas e que o próprio teve a capacidade de, em português, as reproduzir, sem lhe retirar a alegria e a graça que já traziam de origem.
Vejam lá como as coisas são. E eu, que sempre clamo pelo princípio filosófico que Ortega y Gasset deu a conhecer (e que, também este, foi meu companheiro quando se encaixou em Lisboa, depois de se ter enfastiado de Franco), refiro-me ao “Homem e as circunstâncias”, não posso deixar de sublinhar, também aqui, que talvez tenham sido essas circunstâncias que surgiram no Maxime, há 56 anos, e as mesmas de eu ter escrito “O Sol da Meia-noite”, que fizeram com que nascesse um artista de grande valor como foi o meu querido Raul Solnado, agora desaparecido.
Lá estarei a despedir-me com uma recordação da nossa juventude. E das cenas que ocorreram durante os ensaios.
Como a vida, afinal, é curta!...

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