sexta-feira, 14 de agosto de 2009

DAR TEMPO AO TEMPO



Isto de sermos escravos do tempo, de estarmos sempre dependentes das regras que nos são impostas pelos relógios, de termos de obedecer ao que nos é estipulado por aquilo que consideramos obrigações em relação aos outros, a escravatura de não podermos ter as nossas próprias vontades, sejam quais forem as condições de vida que seguimos, é isto que, ao nascermos e durante todo o período que nos é atribuído até à data definitiva da partida, ninguém, sobretudo os que gozam de uma situação de benefício material desafogada, pode fugir. Se atendermos bem ao fenómeno da existência, serão até os mais desfavorecidos, aqueles que serão classificados como pobres, e até mesmo os miseráveis aqueles que gozam do privilégio de não estarem tão sujeitos às obrigações impostas pelo tempo. Quem sofre os efeitos da fome, da falta de um tecto, do abandono total das mínimas condições de vida, serão esses os que não necessitam de estar sempre atentos ao relógio, aos compromissos de faltar a um encontro ou de se apresentarem num local de trabalho.
Essa preocupação do “já ser tarde” ou do “ainda ser cedo”, de nos faltar o tempo ou de sobrar um bocadinho para podermos fazer ainda qualquer coisa antes, essa escravidão dos horários é uma constante que coloca os seres humanos, em todo o seu período de vida, sujeitos a um tiquetaque desses horrorosos aparelhos que, quer sejam umas simples “cebolas” sem valor material ou tratando-se de objectos de verdadeiro luxo, e neste caso, silenciosos e traiçoeiros, cobertos de material precioso, constituem, de igual modo, o ordenador do cumprimento de regras a que o Homem obedece sem discutir.
Se, para vir a este mundo, não estará rigorosamente definida uma hora, já quando se trata da despedida, o horário das cerimónias dos adeus e da guarda em local próprio ou da transformação em cinzas, isso obedece a cumprimento das marcações estabelecidas antes pelas organizações que se encarregam de todos os pormenores das partidas.
E enquanto por cá andamos, havendo os que são cumpridores rigorosos dos encontros marcados e aqueles que se atrasam sistematicamente e que sempre aparecem com desculpas que têm de ser aceites, pois só acontecem a eles, os contrários, por sua vez, põem má cara quando passa um minuto da hora estabelecida e, muitas amizades já foram desfeitas pela simples razão de haver quem não respeite combinações feitas com horário acordado.
Há países, como a Suíça, por exemplo, em que o respeito pelo cumprimento dos horários classifica os cidadãos e aqueles que se mostram desligados dessa regra são colocados na posição de gente de pouco valor e não merecedores da consideração dos outros.
Marcar um encontro com alguém dentro do largo espaço “por volta das 9 horas” ou “lá para as 11 horas”, ou ainda “entre as 10 e as 11”, esse comportamento é muito próprio dos portugueses e entre nós ninguém se admira por lhe ser estabelecida essa maneira de encontro. Quem chegar primeiro que espere.
E isto de não ter tempo para nada, expressão que também faz parte do nosso estilo de conversação, sobretudo quando se verifica alguma falta a um compromisso assumido, serve bem de desculpa de muita gente que se vê permanentemente a gozar de largas folgas.
O ainda ser cedo para já ser tarde deveria fazer pensar aqueles que se afligem com a escassez de ocasião para executar alguma tarefa que têm em mente, pois quer dizer que falta muito tempo para se chegar ao fim da viagem. Já o ser tarde para ainda ser cedo representa exactamente o contrário, ou seja que não vale a pena guardar para depois o que se tem de levar a cabo, pois o final da corrida está já à vista.
Dar tempo ao tempo é talvez o mais coerente que o Homem pode fazer. Não nos damos conta de que, afinal, nós próprios somos tempo e de que não nos podemos separar dele. Cada vez que dizemos que não temos tempo é o mesmo que dizer que não existimos.
O pior de tudo será quando constatamos, mesmo que vagamente, que o tempo se está a esgotar e que, sem olhar para o relógio, mal sentimos o tiquetaque do coração.


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