sábado, 15 de novembro de 2008

ESPÓLIO DE FERNANDO PESSOA


Como seria interessante poder conhecer a reacção de Fernando Pessoa, lá onde estiver e para os que acreditam que há um sítio para onde se vai depois de morto, ao contemplar o leilão que teve lugar e ainda está por resolver completamente do espólio literário do poeta e escritor que, enquanto foi vivo, não mereceu a admiração e o apreço que veio a conquistar depois de ter partido.
Quem tem consciência que o ajudante de guarda-livros que passou grande parte da sua existência a habitar um quarto numa rua estreita da Baixa lisboeta e que, depois de beber o seu bagacito, ia sentar-se numa mesa no Café da Arcada e aí escrevia o muito que, passados anos, constitui o valioso material que foi discutido agora numa leilão proporcionado pelos seus familiares, quem, sendo considerado “pessoano” tem aquele autor na galeria dos seus predilectos, como é o meu caso, não pode deixar de, por um lado, manifestar a sua revolta pela ingratidão pública durante tantos anos e, nesta altura e a partir de determinado momento passar ser considerado como um mestre na ingrata missão de deixar no papel o muito que o seu íntimo deixou transparecer.
Os editores, que são os grandes culpados, quase sempre, de não saber distinguir os valores autênticos no meio dos vendilhões de palavras que, sobretudo na nossa era, sobressaem por motivos vários mas geralmente longe do valor da escrita que produzem, esses profissionais da venda de obras que merecem esse título deverão meter as mãos nas consciências e reconhecer que pouco lhes interessa analisar as propostas que lhes chegam de trabalhos que, pode acontecer, só mais tarde serão reconhecidos como valorosos, para, em primeiro lugar, colocarem os fazedores de escritos que apenas possuem um nome que lhes é reconhecido por serem vistos nas colunas dos jornais ou nas televisões, por exercerem qualquer mister que tem público… público esse que, de uma maneira geral, não lê livros.
Fernando Pessoa rendeu, com o leilão, cerca de 350 mil euros, dando a ganhar à leiloeira 66 mil da mesma moeda.
Vamos a ver como fica, no final do que é chamado “leilão virtual”, todo este espólio, em que o Estado ainda tem de exercer o seu direito de preferência que lhe cabe e ainda após a C.M.L. determinar, após decisão judicial, se alguns dos lotes pessoanos, que declara terem sido adquiridos em 1986 por 36 mil euros, lhes vão ser entregues.
Menos mal que o contrato de arrendamento da casa onde viveu os últimos tempos Fernando Pessoa, em Campo de Ourique, propriedade do município lisboeta, já está salvaguardada, e é essa mesma casa onde, actualmente, se vai recordando a vida literária do infausto Mestre.
Termino como comecei: será que Pessoa se riria de todo este barafustante leilão da papelada, manuscrita ou passada alguma à máquina de escrever, numa altura em que a ele tanto lhe importaria que surgissem apressadamente os descendentes daqueles que não lhe ligaram muita importância enquanto foi vivo?

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