quarta-feira, 23 de março de 2011

OS AGOSTINHOS


NÃO É QUE SE POSSA CHAMAR de uma grande surpresa, não porque a figura que nos deixou se encontrasse em estado extremo de doença, mas porque a sua idade já era de molde a situá-lo numa barreira que não se encontraria assim tão longe da última, se bem que, cada vez mais, a caminhada humana se prolongue para lá do que antes era considerado impensável.
Morreu Artur Agostinho e aqui está mais um acontecimento que me leva a contar alguma coisa que se relaciona com os múltiplos contactos que eu tive com imensas personalidades, nacionais e estrangeiras, e, neste caso, com o antigo locutor português, especialmente depois da sua estadia no Brasil, consequência do mau tratamento que lhe foi dado por cá após a Revolução de 25 de Abril. É que antes disso, ainda que eu exercesse a profissão de jornalista, as nossas posições em relação ao sistema político então vigente, por razões entendíveis não proporcionavam a mesma confraternização que eu mantinha com outros colegas. Isso, para além de a sua área ser a desportiva, especialidade de que eu nunca fui grande sabedor.
Acompanhei, no entanto, o processo que o PREC lhe fez passar, com a prisão sem julgamento e, por isso, a sua decisão de partir para o Brasil, onde procurou, durante alguns anos, exercer uma profissão que lhe garantisse, a si e à sua família, o mínimo de subsistência. Mais ou menos na mesma altura, outro profissional da televisão, Henrique Mendes, partiu para o Canadá, também insatisfeito com o ambiente que lhe foi criado aqui em Portugal.
Como os dessa época se recordam – a memória é a sensibilidade mais traidora a que o ser humano tanto necessita recorrer - , o semanário “o País” que eu lancei e dirigi durante dez anos, pretendeu ser uma publicação indiscutivelmente independente de correntes politicas, pelo que incluía nas suas páginas uma coluna denominada “Coluna da Esquerda” e outra com o título de “Coluna da Esquerda”. E isso, precisamente porque, na primeira, tomavam posição semanal o Fernando Piteira Santos, Jaime Gama e Manuel Alegre e na contrária e dado que tinha recebido das duas figuras atrás referidas, Artur Agostinho e Henrique Mendes, pedidos seus para dizerem de sua justiça, posto que se consideravam mal tratados e sentiam saudades do contacto com os compatriotas a residirem em Portugal, pelo que foram mantendo, por isso, uma assiduidade de textos que vinham de onde se encontravam então.
E essa colaboração prolongou-se, com as características de se tratarem de pessoas obviamente magoadas com o sistema político que passou a ser seguido em Portugal.
Entretanto, na coluna contrária, os colaboradores ligados ao sistema revolucionário, comprovadamente de esquerda, ocupavam o espaço que lhes estava destinado e que se manteve ao longo de bastante tempo, dando possibilidade de comparar pontos de vista contrários que, segundo sempre defendi e defendo, é através da troca de opiniões que se pode e deve manter a busca pelas soluções mais apropriadas aos problemas que envolvem os seres humanos. O saber ouvir e, enquanto isso, manter-se calado e esperar pela sua oportunidade para contradizer o que considere errado, essa atitude está ainda por praticar em Portugal, razão pela qual tantas discussões, ofensas, agressões verbais se verificaram e se continuam a manter no nosso panorama político, o que conduz a que não consigamos encontrar a via para solucionar as situações complicadas que, sempre e progressivamente, se agravam cada dia mais na vida portuguesa.
Mas voltando ao Artur Agostinho, numa das minhas deslocações ao Brasil, nessa época plena de emigrantes portugueses saídos da camada empresarial que não tinha sido bem tratada pela nova vaga revolucionária que aqui se instalou e que dava mostras da sua revolta, sendo esse o local de língua portuguesa fora de portas onde o meu semanário “o País” gozava, depois do desportivo “A Bola”, do mais elevado número de vendas, nessas circunstâncias, tendo combinado com o antigo locutor um encontro no Rio de Janeiro, tive nessa altura ocasião de ouvir de viva voz as suas queixas em relação ao que lhe tinha ocorrido por cá e, naturalmente, a opinião que exprimia não tinha a menor semelhança com a euforia que, entretanto, aqui se vivia e que só perdeu força no momento em que Vasco Gonçalves começou a fazer das suas…
Mal podia prever o então destroçado com as ocorrências nacionais que, anos mais tarde, depois do seu regresso definitivo e da sua nova participação na vida artística, televisiva e outras, acabaria por receber novamente o aplauso do público e pudesse vir a ser até condecorado pelo Presidente da República, mostrando mesmo vaidade em exibir, na botoeira do casaco, o sinal de que tinha sido reconhecido como comendador.
Mas tudo isto obriga-me a incluir neste relato algo que ocorreu no intervalo de uma coisa e de outra: quando foi inaugurada a sede no largo do Rato do PS, realizando-se ali um copo de água, encontrava-me eu em conversa com Mário Soares em pleno salão principal quando, num vozeirão de grande poder, do fundo da sala se me dirigiu o seu portador, largando esta frase:
- Oh José Vacondeus! Ficas a saber que se continuas a publicar no teu Jornal os textos daqueles reaccionários, eu não escrevo mais na Coluna da Esquerda. Ou eles ou eu!...
Imagine-se o meu espanto. Olhei para o Mário Soares, que permaneceu calado, e a única coisa que me veio à fala foi o que não consegui impedir que saísse:
- Pois olha, Então eles!...
E fez-se um silêncio que até provocou no Mário Soares um certo espanto. E não se verificou mais conversa.
É que, de facto, não sendo eu um íntimo nem de Artur Agostinho nem de Henrique Mendes, provavelmente o que seria natural é que lhes tivesse dado a conhecer que terminariam ali os seus desabafos enviados de longe. Mas não consegui sujeitar-me a uma imposição idêntica a tantas outras que me tinham sido feitas ao longo do anterior regime político. E, nessa época, o único a fazer era obedecer.
Levando em conta os largos proveitos que tantos obtiveram e continuam a conseguir pela aceitação absoluta das linhas estabelecidas pelos patrões partidários que se situam no poder – e era nessa ocasião o caso -, os erros de cálculo e de não aproveitamento das circunstâncias favoráveis, sejam elas quais forem, que se apresentam… bem se pagam. Mas, em contrapartida, dorme-se mais tranquilo. Ainda que lutando contra todas as dificuldades que a vida coloca.
Morreu, pois, Artur Agostinho, pessoa que, eu reconheço, ao contrário de tantas outras que me proporcionaram ter podido deitar-lhes a mão como é natural entre os seres humanos, e passaram por cima e não deram mostras em qualquer ocasião do que lhes tinha sido proporcionado pelas circunstâncias, de terem usufruído de uma oportunidade – por acaso oferecida por mim -, no caso do agora falecido esse nunca deixou de, cada vez que me via, apertar-me fortemente a mão, como sinal de que tinha bem presente que, naquele dia no Rio de Janeiro, eu lhe fui oferecer a possibilidade de exercer uma actividade jornalística compensada, como era a de se passar a editar “o País” também no Brasil, sob a sua orientação, para o que existia ali um patrocinador disposto a apoiar a ideia. Infelizmente, essa oportunidade foi por ele aproveitada mas com outra iniciativa, pois lançou, isso sim, uma publicação desportiva, o que me desgostou na altura, mesmo que, no seu caso, por sinal não tenha resultado. Mas como não costumo manter pela vida fora angústias que só servem para provocar ainda maiores tristezas do que aquelas que somos obrigados a suportar pelas circunstâncias, acabei por deitar para trás das costas o que tinha ocorrido.
Houve mais tarde ocasião e por sua iniciativa, de ele se referir já aqui em Lisboa, ao facto, lastimando não ter correspondido ao meu gesto de confiança que lhe transmiti, anos atrás, naquele restaurante no “calçadão” do Rio. Eu, por mim, nunca me mostrei disposto a relembrar tal episódio. O que lá vai, lá vai…
Agora, mais uma vez, pois, atravessando um dia que marca uma situação de despedida, repete-se este hábito tão português de surgirem os “amigos de sempre”, os “feiticeiros do Oz” as figuras que nunca faltam nas imagens televisivas e outras, tirando partido em seu proveito do facto de uma personalidade que desaparece ter tido alguma coisa a ver com quem fala dele.
Chegou, pois, a tua vez Artur. Pelo menos, embora tenha sentido na pele, há 36 anos atrás, os efeitos de uma mudança do sistema político que se viveu e a que ele, por não sentir necessidade de tomar outro caminho, dando a impressão de se encontrar perfeitamente adaptado, conseguiu depois reaver os efeitos benéficos da mudança que se operou e acabou por receber uma comenda que o antigo regime não entendeu nunca proporcionar-lhe. As coisas que a vida oferece!
Quem ainda consegue ser reconhecido em vida, sejam quais forem os dissabores por que tenha passado, pelo menos parte com a sensação de que valeu a pena!
A tempo, registo a casualidade de, num dia, se verificar o falecimento do Artur Agostinho, para, no que se segue e em que se regista o seu funeral, ocorrer algo que marca também o anúncio de outras exéquias. As do Governo de Sócrates, seja qual for a maneira como tais ocorrerão.
A diferença entre os dois acontecimentos é que, se no íntimo de muitos dos portugueses se verificará, creio, uma manifestação de alegria, no exterior do conjunto o que formará um panorama generalizado é o pavor pelo que se vai passar a seguir e quais as consequências de um passo que, nesta altura, oferecem perigos enormes no ambiente do exterior e dos nossos credores, que já são muitos.
Pois que, tal como sucede nas famílias que ficam sempre a aguardar ansiosamente o que lhes caberá no testamento deixado pelo defunto, esperando ser alguns mais beneficiados do que outros, e, no caso nacional, os que já foram contemplados já há bastante tempo que se vêm servindo das mãos largas do que tiver desaparecido, porque os restantes têm de agarrar agora os problemas e procurar não serem piores administradores do que foi o que se escapou a tempo…
Perdoa-me Agostinho ter misturado alhos com bugalhos, mas não consegui resistir à oportunidade. Afinal, é a minha pequena vingança por me teres pregado a partida no Brasil e de que eu já me tinha esquecido!

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