quinta-feira, 30 de abril de 2009

O RETRATO


Eu que pinto, que me agarro aos pincéis e coloco diante de mim o cavalete, com a tela pronta a sofrer os mal tratos que eu lhe posso dar, com as cores que, de início, nunca sei bem quais serão, se resolvesse agora, mais uma vez, preencher o espaço em branco com a reprodução da minha imagem, que veria em mim que merecesse a pena reproduzir?
Nem sei bem. Não consigo, com o que escrevo, imaginar o que poderia sair.
Com a escrita é mais fácil. Quem, como eu, se dedica a esses dois atributos, que foram, há anos, simples entretenimentos e, quando chegou a altura, transformei em actividade permanente, perante a prosa, os poemas e a pintura tenho dificuldade em prever, antes de ter avançado alguma coisa no trabalho a que meti ombros, melhor dizendo as mãos, e não me sinto em condições de prever como vai ser o seu andamento e muito menos como o darei por concluído.
Na escrita, o computador ajuda muito, porque permite avanços e recuos, emendas de parágrafos inteiros, substituição de matéria antes pensada e concebida. Há sempre aalterações a fazer e só com um voltar de costas teimoso é possível substituir o que já estava escrito com aquilo que se desejaria ter executado.
Na poesia será um pouco diferente. É preciso pôr a funcionar a imaginação, a busca do tema, o profundo desejo de encontrar as palavras que melhor se adaptam à ideia e à cadência de um poema. E, claro que não são todas as que vêm no dicionário.
Na pintura, pelo menos comigo, não é fácil executar um quadro de cada vez. Começar e acabar o mesmo. A não ser se no retrato ou na reprodução de alguma modelo, quer vivo quer paisagístico, seja portanto ele qual for e em que existe o motivo à vista e então basta que se iguale o que se vê com a maior fidelidade possível – isso que eu já fiz, mas não pertence nesta altura aos meus propósitos pictóricos -, quando o artista coloca as bisnagas à vista, a dificuldade consiste em saber qual a primeira cor a colocar no espaço ainda em branco, aquela que vai constituir a base da obra que se procura desenvolver. Por isso, ao contrário da escrita, em que o autor não dá início à sua produção colocando palavras à solta no papel, a diferença com o pintar, especialmente nos primeiros passos de cada uma das artes, é enorme e não coabitam as duas actividades no mesmo espaço da imaginação.
Ao redigir tenho mais facilidade em retratar-me. Não existe tanto rigor na semelhança, os retoques literários permitem uma aproximação mais fiel do que eu possa ser de facto. E como a descrição do retratado não é física mas mais interior, com maior preocupação de descrever a maneira de ser, a actuação, o comportamento em todas as suas manifestações, humanas e intelectuais, se bem que se possa também escrever o aspecto exterior, aquele que se encontra mais à vista, ao fazer uma espécie de auto-retrato escrito, ainda que não revelando por completo um ou outro pormenor de maior intimidade, talvez consiga mostrar-me com uma certa fidelidade.
Voltando à pintura, não escondo que já tentei reproduzir-me na tela que tinha disposto para o efeito. E saíram várias demonstrações do esforço que empreguei para me aproximar daquilo que julgo ser a minha personalidade física. Passei por essa fase e a minha preocupação foi a mesma de me ver ao espelho. Pouco interessante. Daí que enveredei pela via da análise subjectiva da minha personalidade, utilizando cores que não se coadunavam com a realidade mas que se adaptavam ao estilo pictórico mais próprio da fase artística por que tinha enveredado.
Em qualquer das situações não fui capaz de me convencer que estava a ser fiel ao modelo.

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