domingo, 14 de dezembro de 2008

CENTENÁRIO? NUNCA!



Cem anos! Que horror! Cumprir essa idade, mesmo que, excepcionalmente, como é o caso do realizador Manuel de Oliveira que chega a tal ponto com invejável agilidade mental, porque a física, essa, como não podia deixar de ser, tem de ficar para trás, atingir um ser humano tal situação é coisa de que não tenho a mais pequena aspiração, sobretudo quando me faltam apenas vinte e dois para apanhar essa carruagem da vida.
Falo por mim, como é óbvio, pois não aspiro a restar um peso morto para os outros, especialmente se não conseguir exercer em pleno aquilo que mais prezo, que é poder escrever sem restrições de qualquer espécie, e não ter capacidade para ler os meus livros, os novos e os antigos, de fazer os meus poemas e de pintar os meus quadros... tudo para ficar para depois.
Por isso, o ideal é, na hora do fim da caminhada em pleno, dizer adeus e passar para outro lado, seja ele qual for, mesmo que não seja nenhum. O acordar morto é o maior bem que pode suceder a quem já cá não anda a fazer nada!
Por enquanto, a consolação ainda é a de ver amigos da nossa geração que continuam a mexer-se, alguns fazendo esforços para se mostrarem em forma, sobretudo se, ao longo da sua vida, deram sinais de saliência em qualquer actividade que desempenharam. Vem-me ao pensamento um actor que, como uma idade igual à minha, me deu o prazer de ter participado na sua estreia, na primeira actuação em que participou e em que ganhou ao primeiros tostões: Raul Solnado. Eu conto, com brevidade:
Na minha juventude, por ser amigo do dono do cabaret Maxime, Carlos Cabeleira, tio do agora muito conhecido pianista e maestro de conjunto José Cabeleira., alí ia com frequência como quem se reúne num café com os amigos. Assim lá ia e sentava-me à mesa com o Carlos, até que um dia surgiu a ideia de se introduzir uma actuação de estilo nacional, para descansar um pouco dos ballets com espanholas que enchiam o palco todas as noites. E aí nasceu a possibilidade de eu entrar a pôr a iniciativa de pé e, numa penada, escrevi um texto que se intitulou “O Sol da meia-noite” e em que o protagonista único era um amolador de tesouras, para o que foi convidado o ainda não actor profissional José Viana, que frequentava o centro de amadores de teatro chamado Guilherme Cossoul.
Mas, a actuação do depois grande José Viana, por culpa do seu isolamento em plena pista do Maxime, não resultou como se desejava e foi aí que se entendeu transformar em diálogo o que até aí era apenas um monólogo. E foi o Zé quem aconselhou a contratação de um jovem que andava também na Academia – o Raul Solnado.
E lá apareceu um rapazinho que, por sinal dava sinais de gaguejar. E foi para ele que tive de acrescentar o texto, cuidadosamente para que as frases não fossem muito extensas. Foi a sua primeira actuação a ganhar dinheiro, por sinal 50 escudos por noite. E até me contou, anos mais tarde, que entretanto tinha sido aumentado para 70 escudos.
Vale a pena chegar a esta altura e ainda ter memória para este tipo de recordações. Mas ir até aos cem anos e não ser capaz de, por exemplo, escrever este texto, isso eu não desejo!

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