continuação)
Mas essa minha passagem pelo vespertino não ultrapassou os seis meses. Era-me impossível conciliar o tempo para cumprir todas as obrigações assumidas. Sobretudo porque, tendo feito nova tentativa para obter autorização da Censura para o lançamento doutra publicação, parece que apanhei aquela gente distraída e, surpreendentemente, deixaram que figurasse como director de uma revista que se chamaria “Mundo Financeiro”, sendo esse título escolhido propositadamente para iludir os censores que pensariam que a revista serviria fins relacionados com o capital. Fui, assim, o director de publicação mais novo em Portugal. Tinha 26 anos.
O que eu pretendia com esta nova revista era fazer chegar aos pequenos e médios empresários uma revista que, em linguagem fácil, lhes desse uma abertura real sobre os problemas económicos do País e do mundo. Aquilo que mantinha a minha chama acesa para continuar a fazer coisas novas é que, também esta iniciativa, obteve do público o melhor acolhimento. E a própria publicidade correspondeu ao que se necessitava.
O Dicionário Enciclopédico de Datas, que continuava a ser o centro de manutenção das despesas do escritório, completou nessa altura o segundo volume, já com dificuldades por parte dos editores, dado que os dois sócios entraram em conflito de gerações. O Rodrigues era fundador da empresa, mas o outro era neto do Gomes original, pelo que a firma acabou por encerrar, deixando incompletas obras que tinha em mãos, entre elas a nossa.
Mais uma razão para eu pretender desenvolver o “Mundo Financeiro”, que passou a ser a única fonte de receitas do escritório. E a expansão que estava a ter deu-me alento a levar por diante a ideia de fazer um número especial dedicado a Angola e, se resultasse, preparar outro sobre Moçambique.
Feito um acordo publicitário com a Sabena sobre as viagens, parti para aquela aventura, embora com o coração nas mãos por não ter confiança bastante quanto à segurança da retaguarda da Redacção.
Mas, na realidade, não poderia ter corrido melhor a minha actuação por terras angolanas. Quer no capítulo dos textos jornalísticos que ia preparando e enviando para Lisboa, como no aspecto da publicidade que obtinha com a maior facilidade, sendo surpreendente como as empresas de Angola pagavam adiantadamente os valores dos anúncios concedidos.
Visitei, assim, praticamente todo o território e denunciei em textos para a revista os casos mais gritantes de injustiças e favoritismos de certos grupos económicos, como eram as situações da Diamang, do algodão e do tristemente célebre “contrato” do açúcar e dos grandes magnates do café. Mas foi, sobretudo, o escândalo do Colonato da Cela que mereceu maior destaque, pois, só por si, justificava uma atenção jornalística especial.
Neste Colonato o que se passou vale a pena ser referido. Dentro do programa de visitas aos vários centros de Angola e seguindo uma ordem imposta pelos horários e dias em que a carreira aérea local, a DTA, cheguei à Cela onde, como tinha acontecido noutros sítios, já teria chegado o aviso enviado pelo Governo da Colónia de que o director da revista “Mundo Financeiro” iria fazer um trabalho jornalístico. Era nítido que as autoridades locais não faziam a menor ideia de que o propósito da publicação era fazer um relato honesto e factual do que se passava em Angola.
Na Cela ocorreu um facto que me marcou muito como jornalista. Ao deslocar-me, de imediato, eram umas 10 horas da manhã, para visitar o engenheiro director daquele Colonato, numas instalações abarracadas, o contínuo preto que estava sentado do lado de fora porta, descalço, levou o meu cartão ao seu chefe, o referido director, para ser recebido. Qual não foi o meu espanto, quando o contínuo voltou e me disse que o “senhor director recebe-o às 4 horas!”.
Não pude esconder o meu espanto e fiz algum comentário de desagrado em voz alta. Estavam sentados à entrada, em bancos corridos, vários brancos que deduzi logo serem colonos. E um deles, perante o ridículo da situação que eu evidenciava, veio oferecer-se, caso quisesse, para me acompanhar na sua carrinha para efectuar uma visita ao Colonato. Como é evidente aceitei, porque isso seria muito útil para o meu trabalho, e passei todo o dia a ouvir, nos diferentes aldeamentos espalhados pela zona, com nomes bem sintomáticos, como Santa Comba Dão, Tondela e outros, as inúmeras queixas que todos, sem excepção, faziam, não só do erro como tinha sido imaginada e como funcionava a experiência, assim como as dívidas acumuladas pelos débitos excessivos de tudo que lhes era fornecido, desde a casa, os utensílios e até os bois e as vacas. Os preços estabelecidos representavam o triplo do que custariam na Metrópole ou nos Açores – havia alí vários açoreanos -, e segundo afirmavam, nem os seus netos conseguiriam pagar a dívida total.
Mas o grave também é que não escondiam a sua acusação de que quem ganhava com tal situação era o director do Colonato, que tinha entendimentos com os construtores e os fornecedores de material.
É evidente que, quando chegaram as tais 16 horas, não fui interromper as conversas ouvindo queixas, jornalisticamente tão interessantes, para aparecer na entrevista marcada no meio da selva, com a antecedência ridícula já referida. E fui directamente para a pousada quando, no meio do jantar, me vieram avisar que “o senhor director estava lá fora “.
Para que não se dissesse que não ouvia todas as partes, fui com o director ao barracão e escutei então as acusações que fez contra todos os colonos, as quais não me pareceram ter qualquer fundamento, não tendo sido capaz de explicar as razões por que, por exemplo em Luanda, havia falta de batatas e de manteiga e no Colonato tudo apodrecia nos armazéns, por deficiência de escoamento.
Na manhã seguinte, muito cedo, na pousada vieram acordar-me para me dizer que “ estavam lá fora uns senhores” que queriam falar comigo. Eram então dois colonos que, vestidos de forma endomingada, ma anunciaram que no largo fronteiro à pousada se encontravam cerca de 200 pessoas que queriam falar com o “senhor inspector”...
Percebi o equívoco daquela gente simples, que tinha sido enviada do interior da província na Metrópole e das Ilhas sem a menor preparação e que continuavam a vestir, no meio daqueles 35 graus, como se continuassem em Trás-os-Montes, por exemplo, e procurei de imediato esclarecê-los de que era apenas um jornalista e que não tinha quaisquer funções oficiais. Não poderia, pois, participar em comícios e o único que me oferecia para os ajudar era ser portador de missivas com as queixas que eles entendessem escrever, que eu procuraria, em Lisboa, fazer chegar ao Presidente do Conselho. E como o meu avião passava depois do almoço para nova etapa, tinham que se apressar.
O resultado foi que andei em toda a minha viagem com um saco com cerca de 300 cartas, o que não foi preocupação e peso de desprezar.
(continua)
Sem comentários:
Enviar um comentário